"Certeza é quando a idéia cansa de procurar e pára"

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Modos de Comunicação e Relações Familiares entre Escravos no Brasil do Século XIX

“Na rua da Consolação 72, há 38 peças para vender [...] todos bonitas peças. Vende-se barato para liquidar.”

(Correio Paulistano. 9 de maio de 1880)

“Escravos bons: Vende-se três excelentes escravos, sendo: um moleque de 16 para 17 anos de idade, bonita figura, outro de 35 anos, habilíssimo, destro de serviço de lavoura e uma creoula de 14 para 15 anos, bonita estampa.”

(Correio Paulistano. 9 de maio de 1880)

“Muita atenção. Vende-se uma elegante e bonita mucama recolhida e de casa particular que tem muitos préstimos com 18 anos de idade, sadia, sabe ainda engomar, fazer tuiote, costurar e cortar figurino. O motivo da venda não desagradará o comprador.”

(Província de São Paulo. 25 de setembro de 1877)

“Fugiu da cidade de Itapetininga o escravo de nome Luiz, cabra 22 anos, altura regular e corpulento, pés grandes, cabelos grenhos, olhos vivos e pequenos, falta de dentes na frente, sabe ler e escrever regularmente, fala bem e muito explicado, muito risonho e fica sempre com papéis nas algibeiras, gosta muito de recitar versos, é pedreiro e copeiro e costuma dizer que é forro, anda descalço. É de Macaé, Rio de Janeiro.”

(Correio Paulistano.18 de agosto de 1877)

FUJÃO

Pede-se a quem encontrar o menor Estevão, muito conhecido aqui dentro da cidade, fugido de casa há 8 dias, o favor de mandar encontrá-lo à rua da Esperança que será gratificado. Ele saiu com calça de algodão de inverno, jaqueta velha e camisa tudo sujo, desconfia-se estar pela Penha, Consolação ou pelas estradas, tem de 9 a 10 anos, é pardo. É escravo e por isso intitula-se às vezes forro.”

(Correio Paulistano. 7 de setembro de 1874)

“Moleque fugido.

Desde quinta-feira anda fugido o escravo Silvestre, natural do Ceará, levou calça embranquecida. Costuma dar-se por livre, mudar de nome e alugar-se para qualquer serviço, outras vezes diz que é cativo de diversas pessoas sem declarar quem é o seu senhor [...].”

(Província de São Paulo. 25 de abril de 1878)

“A Joaquim de Sapaio Goes, conhecido por Quito de Sampaio, morador de Campinas, fugiu no dia 21 de dezembro de 1873 o escravo Rufino, crioulo da Bahia, idade 25 anos mais ou menos, altura regular, bem feito de corpo, cor fula, quase mulato, vermelho, cabelos grenhos, pouca barga, boa dentadura, tem o rosto bem bexigoso, tem o braço direito quebrado, perto da munheca, tem os pés muito largos, os dedos grandes muito abertos, é bem ladino, gosta de cantar e tem boa voz. Quem o prender e levar ao seu senhor, será gratificado. Protesta-se contra quem o tiver açoitado com o rigor da lei.”

(Correio Paulistano. 29 de janeiro de 1878)

“[...] Gregório, idade 26 anos, mais ou menos, mulato caboclo vermelho, boa dentadura, tendo falta de um dos da frente, altura baixo, grosso de corpo, tornando-se bem recalcado, cabelos corredios, bem barbado, tendo as sobrancelhas e bigodes muito serrados, o corpo muito cabeludo. Marinho, idade 25 anos, mais ou menos, alto, bem repartido de corpo, mulato claro, bonito de feições, quando fala ri-se, barba somente no queixo, boa dentadura, ambos são filhos do Ceará, e mostram muito no sotaque serem filhos do norte, ambos tocam viola, e usavam de precatas, foram comprados dos senhores Francisco & Adão [...].”

(Correio Paulistano. 29 de janeiro de 1878)

“Acha-se fugido desde 1º de março do corrente, o escravo Theodoro, pardo, baixo, cabelos corridos e de boa figura, bem feito de corpo, bons dentes e começando a barbear e tendo mais ou menos 22 anos, pagem de serviço doméstico acostumado a lidar com animais, copeiro, entende do ofício de carpinteiro, sabe lidar com máquinas de corte, lê números e faz conta de memória, sabe música, canta e toca flauta e violão e leva-o corpo só roupa de serviço.”

(Correio Paulistano. 6 de maio de 1880)

“400:000 Rs.

Gratifica-se com a quantia acima a quem prender e entregar ao abaixo assinado, em Campinas, os escravos seguintes: Ladisláu, 24 anos, preto estatura regular, bons dentes, prosa e muito risonho, apto para o serviço de roça e cozinha. É natural de Magé, província do Rio, e fugiu da estação de Santa Bárbara em maio de 1876. Marcos, 27 anos, estatura regular, corpo reforçado, cor parda bem clara, cabelos pretos, finos e anelados, pouca barba e pequeno buço. Passa por domador de animais, sabe ler e escrever, entende de cozinha, de pedreiro e de carpinteiro. É natural do Rio Grande do Sul e fugiu em novembro de 1875 da estação de Santa Bárbara. Campinas, 22 de maio de 1878. João J. de Araújo Vianna.”

(Província de São Paulo. 11 de junho de 1878)

“Escravo – fugiu de Bierrenbach & Irmãos, de Campinas, no dia 2 de setembro deste ano, o mulato Rodolpho, de 24 anos, estatura média para baixo, corpo reforçado, fala bem, pisar firme [...] é muito ativo e inteligente, natural de Campos (RJ), professor chapeleiro mas sabe coser em máquina de costura, tendo trabalhado com máquina a vapor no que é prático. Sabe ler.”

(Correio Paulistano. 11 de setembro de 1877)



Para melhor aproveitamento na leitura das fontes disponíveis acima, indico um brilhante texto da profª Marialva Barbosa: "Escravos Letrados: uma página (quase) esquecida"

Disponível em: http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/viewFile/371/325



Saludos!

terça-feira, 7 de junho de 2011

Primavera Árabe

A liberdade precisa ser reconectada com a igualdade. Sem essa conexão, as rebeliões no mundo árabe podem facilmente murchar numa versão parlamentar da velha ordem, incapaz de responder à energia e às tensões sociais explosivas que lhes deram origem

por Perry Anderson






A revolta árabe de 2011 pertence a uma classe rara de acontecimentos históricos: a da concatenação de levantes políticos, um deflagrando o outro em toda uma região do mundo. Houve apenas três precedentes: as guerras de libertação das colônias hispano-americanas de 1810–25; as revoluções europeias de 1848–49; e a queda dos regimes no bloco soviético em 1989–91. Cada um deles foi historicamente específico de seu tempo e lugar, tal como serão as explosões em cadeia no mundo árabe. Desde que se acendeu o fósforo na Tunísia, em dezembro de 2010, e as chamas se espalharam para o Egito, Bahrein, Iêmen, Líbia, Omã, Jordânia e Síria, não se passaram mais de três meses; qualquer previsão sobre os resultados é prematura.

Na lista dos levantes antigos, nenhum durou menos de dois anos. O mais radicalacabou em completa derrota, por volta de 1852. Outros dois triunfaram, embora os frutos da vitória tenham sido muitas vezes amargos: bem diversos das esperanças de um Simón Bolívar ou de uma Bärbel Bohley. O destino final da revolta árabe pode ser parecido com qualquer um deles, mas também pode ser sui generis.

Dois aspectos fizeram com que o Oriente Médio e o norte da África ocupassem uma situação à parte no universo político contemporâneo. O primeiro é a duração e a intensidade do domínio ocidental da região, durante todo o século passado. Do Marrocos ao Egito, o controle colonial do norte da África repartiu-se entre a França, a Inglaterra e a Itália antes da Primeira Guerra Mundial, enquanto o Golfo virou uma série de protetorados britânicos, com Áden constituindo um posto extremo da Índia britânica. No pós-guerra, no último vagão do butim territorial europeu, os despojos do Império Otomano ficaram com a Inglaterra e a França, formando o que foi denominado, nas suas pranchetas e esquadros, Iraque, Síria, Líbano, Palestina e Transjordânia.

A colonização formal demorou a chegar a boa parte do mundo árabe. A África Subsaariana, o Sudeste da Ásia, o subcontinente indiano, para não falar da América Latina, foram conquistados muito antes que a Mesopotâmia ou o Levante. Diferentemente de qualquer dessas zonas, porém, no mundo árabe a descolonização formal foi acompanhada por uma sequência praticamente ininterrupta de guerras e intervenções imperiais no período pós-colonial.

As intervenções começaram cedo, com a expedição inglesa para reinstalar um regente fantoche, em 1941, e se multiplicaram com a edificação de um estado sionista sobre o túmulo da revolta palestina, esmagada pela Inglaterra em 1938–39. Daí em diante, um poder colonial em expansão, atuando às vezes como sócio, às vezes por procuração, mas com frequência crescente como iniciador de agressões regionais, combinou-se com a afirmação dos Estados Unidos como o senhor do mundo árabe, no lugar da França e da Inglaterra.

Desde a Segunda Guerra Mundial, cada década tem tido sua colheita de violência, seja por meio de suserania, seja através da ocupação. Nos anos 40, houve a nakba desencadeada por Israel na Palestina. Nos anos 50, o ataque anglo-franco-israelense ao Egito e os desembarques americanos no Líbano. Nos 60, a Guerra dos Seis Dias de Israel contra o Egito, a Síria e a Jordânia. Nos anos 70, a Guerra do Yom Kippur. Nos 80, a invasão israelense do Líbano e o esmagamento da Intifada palestina. Nos anos 90, a Guerra do Golfo. Na última década, a invasão e ocupação americana do Iraque. Na atual, o bombardeio da Líbia pela Otan, agora em 2011.

Nem todo ato de beligerância nasceu em Washington, Londres, Paris ou Tel-Aviv. Conflitos militares de origem local também foram comuns: a guerra civil no Iêmen, nos anos 60, a tomada do Saara ocidental pelo Marrocos, nos 70, o ataque ao Irã pelo Iraque, nos 80, e a invasão do Kuwait pelo Iraque, nos 90. Mas a conivência, ou envolvimento ocidental, raramente esteve ausente. Pouca coisa andou na região sem o atento olho imperial e – quando necessário – sem a aplicação de força ou dinheiro.

O motivo para o grau excepcional de vigilância e interferência euro-americana no mundo árabe é simples. Por um lado, ele é o repositório da maior concentração de reservas de petróleo da Terra, vitais para as economias do Ocidente. Essa condição gerou um vasto arco de desdobramentos, desde bases aéreas, navais e de espionagem em todo o Golfo, com um braço avançado no Iraque, até a profunda infiltração dos órgãos de segurança egípcios, jordanianos, iemenitas e marroquinos.

Por outro lado, o mundo árabe é a moldura na qual se insere Israel, que precisa ser protegido porque os Estados Unidos abrigam o lobby sionista, enraizado na comunidade imigrante mais poderosa do país – que nenhum presidente ou partido ousa afrontar –, e a Europa purga a culpa pela Shoah. Como Israel, por sua vez, ainda é uma potência ocupante que depende do auxílio ocidental, e os seus patrocinadores viraram alvo da retaliação de grupos islâmicos (que praticam o terror tal qual o Irgun e o Lehi no seu tempo), o controle da região tornou-se cada vez mais estrito. Nenhuma região do mundo tem merecido o mesmo grau de atenção da hegemonia imperial.

O segundo aspecto distintivo tem sido a longevidade e a intensidade das variadas tiranias que, desde a descolonização formal, rapinam o mundo árabe. Nos últimos trinta anos, regimes democráticos, na forma entendida pela organização Freedom House, espalharam-se da América Latina à África Subsaariana e ao Sudeste da Ásia. No Oriente Médio e no norte da África, porém, não ocorreu nada análogo. Ali, déspotas de toda catadura têm se mantido no poder, independentemente das mudanças de tempo ou circunstância.

A família Al Saud – no melhor sentido siciliano do termo –, que tem sido o instrumento central do poder americano na região desde o seu acordo com Roosevelt, manda na península, sem contestação, há quase um século. Os xeques amestrados do Golfo e de Omã, sustentados ou instalados pelo Raj, o sistema inglês na Índia, têm tanta necessidade de ouvir a opinião de seus súditos quanto os seus vizinhos wahabitas, colaboradores de Washington. As dinastias da Jordânia e do Marrocos – a primeira, criatura dos ingleses; a segunda, herança do colonialismo francês – passam o poder a seus herdeiros há três gerações de autocratas, junto com uma fachada parlamentarista. Tortura e assassinato são a rotina desses regimes, os melhores amigos do Ocidente na região.

Tampouco foi diferente nas chamadas repúblicas, cada qual uma ditadura tão brutal quanto a outra, e muitas delas não menos dinásticas que as próprias monarquias. Também nelas a longevidade coletiva dos governantes não teve paralelo em lugar nenhum: Kadafi no poder por 41 anos; Assad, pai e filho, 40; Saleh, 32; Mubarak, 29; Ben Ali, 23. Somente os militares argelinos, numa presidência rotativa à moda dos generais brasileiros, fugiram dessa norma, mas respeitaram todos os demais princípios de opressão.

Na postura externa, esses regimes foram menos uniformemente subservientes ao imperialismo hegemônico. A ditadura egípcia, salva de uma debacle militar, em 1973, graças aos Estados Unidos, foi desde então um fiel peão de Washington, tendo menos independência operacional em relação aos americanos do que o reino saudita. O governante iemenita foi comprado numa pechincha para atuar na “guerra contra o terror”. O tunisiano cultivou patrões na Europa, sobretudo na França, mas não só nela.

Os regimes argelino e líbio, gozando da alta renda proporcionada pelos recursos naturais, tiveram uma margem maior de autonomia, embora demonstrando um padrão crescente de obediência – exigida na variante argelina para conseguir a aprovação ocidental ao esmagamento da oposição islâmica, e na variante líbia para expiar seu passado e fazer lucrativos investimentos na Itália.

A exceção significativa foi a Síria, que não poderia se submeter sem a retomada das Colinas de Golan – bloqueada por Israel – e receosa em deixar o mosaico fóssil do Líbano cair totalmente nas mãos do dinheiro saudita e da espionagem ocidental. Mas até mesmo essa exceção foi intimada, sem maiores dificuldades, a cerrar fileiras na Operação Tempestade no Deserto.

As duas vigas mestras da região – a dominação contínua pelo sistema imperial americano e a ausência contínua de instituições democráticas – estão conectadas. A conexão não é uma simples derivação. Onde a democracia é considerada uma ameaça ao capital, os Estados Unidos e seus aliados nunca hesitaram em removê-la, como ilustra o destino de Mossadegh, de Arbenz, de Allende ou, atualmente, de Jean-Bertrand Aristide. No sentido inverso, onde a autocracia é essencial, ela é bem preservada.

Os despotismos da Arábia, baseados em cambalachos tribais e no trabalho suado de imigrantes, são engrenagens estratégicas da Pax Americana, nas quais o Pentágono intervém de supetão quando é necessário protegê-las. As ditaduras republicanas, ou monárquicas, que pairam sobre grandes populações urbanas noutros pontos da região, são expedientes um pouco diferentes, mais de ordem tática. Essas tiranias têm sido auxiliadas e apoiadas pelos Estados Unidos, mas não foram uma criação americana exclusiva. Todas têm raízes nas sociedades locais, ainda que sejam bem regadas por Washington.

Segundo o famoso dito de Lênin, a república democrática é a casca ideal para o capitalismo. A partir de 1945, nenhum estrategista ocidental discordou da afirmação. O imperium euro-americano preferiria, em princípio, lidar com democratas árabes a tratar com ditadores, desde que fossem igualmente respeitosos da sua hegemonia. A partir da década de 80, tal respeito raramente faltou nas regiões recém-democratizadas.

Por que o mesmo processo não se aplica ao Oriente Médio e ao norte da África? Essencialmente, porque os Estados Unidos e seus aliados têm motivos para recear que, devido a sua longa história de violência imperial na área e às permanentes demandas de Israel, o sentimento popular possa não lhes apresentar um reconforto eleitoral semelhante ao de outras regiões.

Uma coisa é construir um regime cliente à força de baionetas, e pastorear votos suficientes para sustentá-lo, como foi feito no Iraque. Outra coisa são eleições mais livres, como descobriram os generais da Argélia e os chefes da Fatah. Em ambos os casos, confrontados com a vitória democrática de forças islâmicas consideradas pouco sensíveis a pressões ocidentais, a Europa e os Estados Unidos aplaudiram a anulação das eleições e a repressão dos vencedores. As lógicas imperial e ditatorial continuam entrelaçadas.

Esse é o quadro no qual a revolta árabe finalmente irrompeu, numa concatenação facilitada pelos dois grandes fatores de unidade da região: a língua e a religião. O mote dos levantes foram as demonstrações em massa de cidadãos desarmados, que em quase toda parte enfrentaram com coragem exemplar a repressão a gás, água e chumbo.

De país em país, a reivindicação principal ecoou num grito estrondoso: Al-Sha’b yurid isquat al-nizam – “O povo quer o fim do regime!” O que as multidões nas praças e ruas querem, essencialmente, é liberdade política. A democracia, uma palavra bem conhecida – todos os regimes a utilizam amplamente –, mas uma realidade desconhecida, virou o denominador comum dos vários movimentos nacionais.

Raramente articulado a um conjunto de instituições, o poder de atração da reivindicação de democracia surgiu mais como uma negação do status quo – por ser tudo que a ditadura não é – do que da afirmação do seu conteúdo. Punir a corrupção nos altos escalões do velho regime aparece com mais destaque do que as particularidades da Constituição a ser feita. Nem por isso a dinâmica dos levantes ficou menos clara. Seu objetivo é, no mais clássico dos sentidos, puramente político: liberdade.

Mas por que agora? O elenco odioso de regimes permaneceu inalterado por décadas. A deflagração das revoltas não se explica pelos seus objetivos. Nem pode ser atribuída apenas a novos canais de comunicação: a difusão da Al Jazira, os aparecimentos do Facebook ou do Twitter facilitaram, mas não criaram o novo espírito de insurgência.

A fagulha que iniciou o incêndio sugere a resposta. Tudo começou com a morte, provocada pelo desespero, de um vendedor de verduras empobrecido num vilarejo no interior da Tunísia. Na raiz da comoção que sacode o mundo árabe havia pressões sociais vulcânicas: desigualdade social, aumento do custo dos alimentos, falta de moradia, ausência de emprego para a juventude instruída – e não instruída – numa pirâmide demográfica sem paralelo no mundo. Em poucas regiões a crise social é tão aguda, e tão evidente é a ausência de um modelo de desenvolvimento capaz de integrar as novas gerações.

Até agora, no entanto, há um desencontro quase total entre o conteúdo social da revolta árabe e os seus objetivos políticos. Em parte, isso é reflexo da composição dos principais participantes. Nas grandes cidades – à exceção de Manama, a capital do Bahrein – não foram os pobres que, em geral, acorreram às ruas majoritariamente. Os trabalhadores não organizaram uma longa greve geral. Os camponeses estão quase ausentes.

É esse o efeito de décadas de repressão policial, e da eliminação de qualquer organização coletiva dos desfavorecidos. O seu ressurgimento levará tempo. Mas o desencontro é também efeito do limbo ideológico em que a sociedade foi deixada nessas mesmas décadas – um período de descrédito do socialismo e do nacionalismo árabes e de neutralização do confessionalismo radical, que deixou um islamismo aguado como único passe-partout. Nessas condições criadas pela ditadura, o vocabulário da revolta só se pode concentrar na ditadura – na queda da ditadura – como discurso político, e em nada mais.

A liberdade precisa ser reconectada com a igualdade. Sem essa conexão, as rebeliões podem facilmente murchar numa versão parlamentar da velha ordem, tão incapaz de responder à energia e às tensões sociais explosivas quanto as oligarquias decadentes do período de entreguerras. A prioridade estratégica para a reemergência da esquerda no mundo árabe deve ser a luta pelas formas de liberdade política que permitirão que essas pressões sociais encontrem a expressão coletiva adequada.

Isso significa, por um lado: a abolição geral de toda a legislação de emergência; a dissolução do partido dirigente ou a deposição da família governante; a limpeza do aparelho do Estado de todos os ornamentos do antigo regime; o julgamento dos seus líderes.

E significa, por outro lado, depois de varrer os restos do antigo regime, prestar uma atenção cuidadosa e criativa aos detalhes das Constituições a serem escritas. Nesse ponto, as exigências-chave são: liberdade total de expressão e organização cívica e sindical; sistemas eleitorais sem distorção – ou seja, proporcionais, e não do tipo em que só o mais votado se elege; presidentes sem plenos poderes; proibição do monopólio, estatal ou privado, dos meios de comunicação; e o acesso, garantido em lei, dos desfavorecidos aos benefícios públicos.

Somente assim as reivindicações de justiça social que deflagraram a revolta podem dar origem à liberdade coletiva necessária para a sua conquista.

Outra ausência se faz notar no levante. Na mais famosa das revoltas concatenadas, a europeia de 1848–49, não só dois, mas três tipos de exigências se entrelaçaram: políticas, sociais e nacionais. O que dizer da última, a árabe, de 2011? Até o momento, os movimentos de massa não produziram uma só demonstração antiamericana, ou sequer anti-israelense. O descrédito histórico do nacionalismo árabe, com o fracasso do nasserismo no Egito, é, sem dúvida, uma razão para isso. Outra razão é o fato de que a subsequente resistência ao imperialismo americano foi identificada com regimes – Síria, Irã, Líbia – tão repressivos quanto os que se entenderam com ele. Ainda assim, é notável que o anti-imperialismo seja o cachorro que não latiu – ou não latiu até agora –no pedaço do mundo onde o poder imperial é mais visível. Isso pode continuar?

Os Estados Unidos podem assumir uma visão dos acontecimentos que, até agora, é confiante e otimista. No Golfo, o levante no Bahrein, que poderia ter posto em risco seu Q.G. naval, foi esmagado por uma intervenção contrarrevolucionária na melhor tradição de 1849, com uma impressionante demonstração de solidariedade interdinástica. Os reinos saudita e hashemita aguentaram firmes.

O bastião iemenita da batalha contra o salafismo parece mais periclitante, mas o ditador de turno é dispensável. No Egito e na Tunísia, os governantes se mandaram, mas a hierarquia militar do Cairo, com suas excelentes relações com o Pentágono, continua intacta. E a grande força civil emergente em ambos os países é um islamismo domesticado.

Anteriormente, a perspectiva de a Irmandade Muçulmana – ou de suas sucursais regionais – entrar para o governo teria provocado grande alarme em Washington. Mas o Ocidente dispõe agora de um modelo tranquilizador na Turquia, aplicável nas terras árabes, que oferece o melhor dos mundos políticos. O Partido da Justiça e Desenvolvimento da Turquia mostrou o quão leal à Otan e ao neoliberalismo ele pode ser. E mostrou também que é capaz de aplicar doses certas de intimidação e repressão, mesmo numa democracia piedosa e liberal, brandindo o porrete e o Alcorão. Se um Erdoğan puder ser encontrado no Cairo ou em Túnis, Washington terá todos os motivos para ficar satisfeito com a sua troca por Mubarak e Ben Ali.

Nessa perspectiva, a intervenção militar na Líbia pode ser considerada a cereja no bolo – servindo, simultaneamente, para polir as credenciais democráticas do Ocidente e se livrar do mais recente e embaraçoso recruta da “comunidade internacional”. Sendo mais um luxo do que uma necessidade para o poder global americano, a iniciativa do ataque da Otan veio da França e da Inglaterra, reencenando, como numa máquina do tempo, a expedição de Suez em 1956.

Novamente, Paris tomou a iniciativa, para limpar Sarkozy de suas intimidades com Ben Ali e Mubarak, e também para deter a sua desastrosa queda nas pesquisas de opinião. Londres entrou em forma para atender ao desejo de Cameron em imitar Blair. O Conselho de Cooperação do Golfo e a Liga Árabe deram cobertura ao empreendimento numa mansa imitação de Israel em 1956.

Mas Kadafi não é Nasser, e Obama, dessa vez com poucos motivos para temer as consequências, pôde acompanhar a iniciativa. O protocolo de hegemonia exigiu que os Estados Unidos assumissem o comando nominal, permitindo que guerreiros como a Bélgica e a Suécia mostrassem o seu valor aéreo. Para o pessoal da era Clinton que permaneceu no atual regime americano, um bônus adicional será a reabilitação da intervenção humanitária, depois dos reveses no Iraque.

Os meios de comunicação e a intelectualidade francesa, como era de se prever, extasiaram-se com a restauração da honra da pátria nesse gênero de empreendimento. Mas mesmo nos Estados Unidos o cinismo está disseminado: o molho para o ganso líbio, visivelmente, não é o mesmo para o pato de Bahrein, ou qualquer outro.

Até o momento, nada disso alterou o panorama da revolta. Cautela com o poder do hegemônico, preocupação com aspectos nacionais, simpatia pelos rebeldes líbios, esperança de que o episódio acabe logo – tudo isso se combinou para emudecer as reações ao mais recente bombardeio pelo Ocidente. Mas não é de se esperar que a questão nacional continue indefinidamente separada da questão política e da social.

Para o mundo muçulmano a leste da agitação, as guerras americanas no Iraque, no Afeganistão e no Paquistão ainda estão por serem vencidas, e o bloqueio do Irã ainda está longe da sua conclusão lógica. E, no centro da agitação, a ocupação da Cisjordânia e o bloqueio de Gaza continuam como antes. Até o mais moderado dos regimes democráticos pode achar difícil se isolar desses teatros de prepotência imperial e de selvageria colonial.

A maioria das nações do mundo árabe – exceto Egito e Marrocos – são criações artificiais do imperialismo ocidental. Mas, assim como na África Subsaariana e alhures, as origens coloniais não impediram que se cristalizassem identidades no interior das fronteiras artificiais desenhadas pelos colonizadores. Nesse sentido, toda nação árabe tem hoje uma identidade coletiva tão real e problemática quanto qualquer outra.

Há uma diferença, porém. Língua e religião, entrelaçadas em textos sagrados, foram – e são – historicamente fortes para caracterizar uma demarcação cultural que extrapola a imagem de cada estado-nação em particular. Esse ideal forjou o nacionalismo árabe – e não egípcio, iraquiano ou sírio.

Houve então a ascensão, a corrupção e o fracasso do nasserismo e do baathismo. Eles não ressuscitarão. Mas o impulso que fez com que existissem terá de ser recuperado, se a revolta se tornar uma revolução no mundo árabe. A liberdade e a igualdade precisam ser reconectadas. Mas, sem fraternidade, numa região tão difusamente maltratada e interligada, elas correm o risco de azedar.

Dos anos de 1950 em diante, pagou-se um preço muito alto, em termos de egoísmo nacional, para se obter algum progresso no Oriente Médio e no norte da África. O que se precisa não é a caricatura de solidariedade oferecida pela Liga Árabe, instituição cuja folha corrida de traições e de fracassos rivaliza com a da Organização dos Estados Americanos, a OEA, nos dias em que Fidel Castro, com toda a razão, a chamava de Ministério das Colônias americano. É necessário que exista um internacionalismo árabe generoso, capaz de visualizar – num futuro distante, quando o último xeque for derrubado – uma distribuição equitativa da riqueza do petróleo, proporcional à população, e não manter a monstruosa e arbitrária opulência de uns poucos, e a indigência desesperada de tantos outros.

No futuro mais imediato, a prioridade é simples: uma declaração conjunta de que o tratado abjeto que Sadat assinou com Israel está morto e enterrado –um tratado que arrasou os seus aliados em troca de um arranjo que não dá ao Egito sequer a soberania para mover seus soldados em seu próprio território; um tratado cujas implicações referentes à Palestina, desprezíveis em si mesmas, Israel nem sequer simulou cumprir. Eis aí o teste decisivo da recuperação da dignidade democrática árabe.


Revista Piauí_57, jun. 2011.



terça-feira, 22 de março de 2011

Depois da Revolta

Os dias de hegemonia dos Estados Unidos não chegaram ao fim, mas, de Ancara ao Cairo, de Túnis a Beirute, os contornos de um Oriente Médio pós-americano podem ser vislumbrados




por Adam Shatz






A classificação conceitual usada no Ocidente para dividir o mundo islâmico entre amigos e inimigos, moderados e radicais, bons e maus muçulmanos nunca pareceu tão inadequada ou irrelevante. Um governo árabe “moderado” e “estável”, pilar da estratégia americana no Oriente Médio, foi deposto no Egito por protestos em escala nacional que reivindicavam uma reforma democrática, um governo transparente, liberdade de reunião, uma distribuição mais justa dos recursos do país e uma política externa alinhada com a opinião popular. Esse movimento deixou outros governos árabes em pânico, ao mesmo tempo em que despertou a esperança de seus povos jovens e frustrados. Se a revolução no Egito for bem-sucedida, terá derrubado não só um regime corrupto e autocrático. Terá destronado também o vocabulário e os padrões de pensamento que sustentaram a política ocidental no Oriente Médio por mais de meio século.

O destino da revolução permanece incerto. Mubarak se foi, os manifestantes em sua maioria foram varridos das ruas e o Exército preencheu o vácuo. Disciplinado, continua no poder e dispõe de recursos consideráveis à sua disposição. A retórica cortante de seus comunicados pode soar refrescante após os discursos de Mubarak, de seu filho Gamal e dos empresários que dominavam o Partido Nacional Democrático. Até agora, a maior parte dos egípcios tem se mostrado disposta a dar ao Conselho Supremo das Forças Armadas o benefício da dúvida. Como em qualquer revolução, o desejo de ordem e segurança é quase tão forte quanto o anseio por mudança. Milhares de trabalhadores em indústrias críticas entraram em greve, desafiando o Conselho Supremo, e os egípcios mais pobres podem desejar transformações mais abrangentes do que as pleiteadas pela classe média.

Os temores de uma tomada do poder pelo Exército são descabidos: as Forças Armadas egípcias sempre preferiram permanecer distantes da política, para que um governo civil lidasse com as questões do dia a dia. Ainda que a Lei de Emergência venha a ser suspensa e se estabeleça um governo democrático, qualquer tentativa de reduzir os privilégios do Exército, ou de reconfigurar a política externa, será recebida com resistência pelos generais. Nesse caso, é improvável que os Estados Unidos imponham alguma pressão significativa, ou que suspendam sua ajuda. Com suas cidades militares autossuficientes, nas quais apartamentos confortáveis e produtos estrangeiros podem ser obtidos com desconto, e uma ampla participação numa economia baseada em um misto de clientelismo e neoliberalismo, os oficiais graduados do Exército vivem em um mundo à parte, e não querem vê-lo perturbado. Eles tampouco querem ver ameaçada a ajuda que recebem dos Estados Unidos, o que significa que não vão aderir a qualquer mudança dramática na orientação da política externa – para alívio de Israel.

O Exército recebe 1,3 bilhão de dólares por ano dos Estados Unidos para manter a paz com Israel e prover diversos serviços, como ajudar no bloqueio a Gaza e enfraquecer a unidade palestina, interrogar prisioneiros na “guerra contra o terror” e agilizar a passagem de navios americanos pelo Canal de Suez. O próprio Exército egípcio também tem vínculos estreitos com Israel. De acordo com um telegrama divulgado pelo WikiLeaks, Omar Suleiman, o chefe de inteligência de Mubarak e vice-presidente por um breve período, disse aos israelenses que eles podiam se sentir “à vontade” para invadir a Rota Filadélfia, uma estreita faixa de terra entre o Egito e Gaza, para combater o tráfico de armas pelo Hamas. Empresas egípcias próximas à família Mubarak também vendem gás natural para Israel com desconto – elas respondem por 40% do abastecimento do Estado judeu. Como era de se esperar, o Conselho Supremo das Forças Armadas se apressou em garantir a Israel que o tratado de paz seria honrado. Resta saber se, sob um governo mais democrático, o Egito vai interpretar o tratado em termos tão suscetíveis aos interesses dos Estados Unidos e de Israel.

Ainda é cedo para dizer se o Egito fará a transição para um governo civil, se recuperará a sua soberania depois de trinta anos como Estado-cliente dos Estados Unidos, e muito menos se vai um dia recuperar a liderança regional que exerceu sob Nasser. Mas não é cedo para especular sobre o impacto da derrubada de Mubarak no equilíbrio de forças da região. “Os regimes estão se sentindo vulneráveis”, disse o filósofo sírio Sadiq al-Azm. Com os protestos se espalhando pelo mundo árabe e muçulmano, não surpreende que os governantes recorram à força bruta. Mas ela pode não ser tão eficaz quanto foi no passado – justamente devido aos exemplos dados pela Tunísia e pelo Egito.

A resistência sem violência ganhou o charme – e reputação de eficácia – que nunca teve no mundo islâmico. Acreditava-se que naquela parte do mundo os governos não poderiam ser derrubados por meios pacíficos; que ali a luta armada perpetuaria um estilo mais viril de rebelião, calcado nos anos heroicos da revolução palestina. Outro efeito bem-vindo dos protestos de agora foi o de resgatar a linguagem da democracia no mundo islâmico, de onde ela havia sido expelida pelas guerras norte-americanas.

O nascimento de um movimento democrático no mundo árabe não é o golpe fatal para o islamismo anunciado pelos analistas ocidentais mais otimistas. Enquanto milhões de árabes pobres forem induzidos a recorrer a organizações como a Irmandade Muçulmana, em vez de procurarem o Estado para obter serviços básicos, e enquanto os locais sagrados islâmicos de Jerusalém seguirem sob o controle israelense, o braço político do Islã continuará a ter uma base de apoio significativa. Graças à experiência egípcia, contudo, as velhas divisões entre forças islâmicas e seculares foram atenuadas. Ficou demonstrado que elas podem atuar unidas em prol de objetivos políticos comuns. O canto ouvido de ponta a ponta na praça Tahrir – “A Tunísia é a solução” – em breve poderá eclipsar o velho slogan da Irmandade Muçulmana, “O Islã é a solução”.

Nos Estados Unidos, as revoltas provocam surpresa. Soam como non sequitur em um debate que, dez anos depois do 11 de Setembro, permanecia estagnado na ameaça do radicalismo islâmico. À medida que o medo se transformou em fascínio, e que os jornalistas e autoridades americanas começaram a tentar interpretar os protestos, eles se esforçam em encontrar explicações que parecem refletir um desejo de reenquadrá-los em uma imagem mais familiar. O debate americano sobre o Egito não tardou em se transformar num debate sobre os Estados Unidos.

Falou-se da influência de Gene Sharp, o renomado teórico da não-violência, citado como inspirador das revoluções na Tunísia e no Egito; das lições que os ativistas egípcios aprenderam em Belgrado com ativistas contrários ao ex-presidente da Iugoslávia, Slobodan Milošević, treinados pelos americanos; e, acima de tudo, do papel facilitador desempenhado pelo Twitter e pelo Facebook. A engenhosidade tecnológica americana, graciosamente transmitida para o mundo árabe, foi a parteira da revolução. Não é de espantar que, nos Estados Unidos, o rosto mais popular da revolta egípcia tenha sido um jovem executivo do Google, Wael Ghonim, cuja visão empreendedora de mudança não soaria deslocada no Vale do Silício. Só que os homens que fizeram as barricadas na praça Tahrir e as defenderam quando chegaram os rufiões a cavalo não eram usuários do Twitter; eram Irmãos Muçulmanos, cujas visões muito diferentes do futuro do Egito terão de ser levadas em conta, e não apenas como um perigo a ser evitado.

Acadêmicos americanos, tanto de direita quanto de esquerda, também tentaram reivindicar crédito pela revolta. Mas parecem não ter notado na praça Tahrir os cartazes que denunciavam Mubarak como um agente americano, e que sugeriam em hebraico que ele se exilasse em Tel-Aviv. Na verdade, a revolta brotou em parte de um movimento cujas origens remontam aos comitês populares em defesa da Segunda Intifada. Vários democratas egípcios se opuseram por muito tempo à posição do governo sobre a Palestina, considerada não só injusta, como um insulto à dignidade nacional.

Uma vez deposto Mubarak, o governo Obama, amplamente criticado por sua resposta incoerente – e muitas vezes ciclotímica – à revolta, tentou apresentar o seu desempenho como o triunfo de uma diplomacia silenciosa e heroicamente persistente. As mensagens ambíguas, contradições e mudanças de rumo repentinas refletiam, dizem-nos agora, uma disputa entre a jovem guarda da Casa Branca, comprometida com a mudança de ventos no Oriente Médio, e a velha guarda cautelosa do Departamento de Estado de Hillary Clinton. Mubarak podia ser abandonado, mas não o Estado egípcio, cuja cooperação é essencial para a política americana na região, do antiterrorismo à luta contra o Irã, do “processo de paz” entre Israel e os palestinos ao Canal de Suez.

Na realidade, se a resposta de Washington pareceu confusa, não foi tanto por causa de um conflito geracional em Washington, mas devido à enraizada “parceria” de trinta anos com o regime “moderado” do Egito. Não surpreende que o governo Obama tenha coberto de elogios os militares, que eles esperam que contenham os manifestantes ansiosos por mudanças mais radicais nas políticas interna e externa.

Em seu primeiro pronunciamento após a queda de Mubarak, Barack Obama não ocultou a natureza da relação dos Estados Unidos com o governo militar egípcio. Apenas fez o possível para expressá-la na retórica despolitizada da amizade e da parceria. O presidente pareceu tenso e preocupado à medida que narrava a derrota de um velho aliado. Enfatizou que os militares teriam de garantir uma transição “verossímil”, iniciar a redação de uma nova Constituição, suspender a Lei de Emergência e incluir “todas as vozes do Egito” – um aceno implícito à Irmandade Muçulmana.

Mas migrou rapidamente para o plano nobre e etéreo da História, no qual sempre se mostrou mais à vontade, seja discutindo revoluções no mundo árabe ou em sua vida pessoal. Obama celebrou a “força moral da não-violência”, citou Martin Luther King – “Há algo na alma que clama por liberdade” – e comparou a transformação democrática do Egito à queda do Muro de Berlim. O que Obama não disse – não poderia fazê-lo – é que ele não desempenharia o papel de Mikhail Gorbachev no processo atual.

“O Egito jamais será o mesmo”, disse Obama no discurso, mas sua equipe não parece achar que isso implique a necessidade de mudanças em Washington. O secretário de Imprensa da Casa Branca tentou transformar o sucesso da revolta no Egito – uma derrota americana – em uma futura vitória no Irã, saudando as manifestações do Movimento Verde em Teerã. Disse desejar que o governo iraniano honrasse a liberdade de reunião, como o governo no Cairo fizera. Mas parece ter se esquecido de que pelo menos 365 manifestantes no Egito morreram, milhares foram feridos e centenas detidos, e que a revolta em questão pretendia derrubar o governo que ele estava elogiando.

Nem Hillary Clinton nem Obama, porém, parecem ter se comovido quando aquele “algo na alma que clama por liberdade” se fez ouvir no Bahrein. Os protestos da maioria oprimida de xiitas contra a monarquia sunita apoiada pelos Estados Unidos eram inconvenientes: o rei Hamad bin Isa al-Khalifa, um inimigo confiável do Irã, é o anfitrião da Quinta Frota da Marinha americana e de mais de 2 mil militares americanos. Ademais, a derrubada do regime poderia dar ideias à maioria sunita insatisfeita nas províncias orientais, ricas em petróleo, da Arábia Saudita.

De repente, é Washington, e não o Oriente Médio, que parece estagnado. As revoltas na Tunísia e no Egito – e os sinais crescentes de turbulência na esfera de influência americana no Oriente Médio – aconteceram a despeito do poder americano, e não por causa dele. Deixaram os Estados Unidos confusos e isolados. Seus aliados mais próximos na região são uma monarquia absolutista em que mulheres não podem dirigir e decapitações determinadas pela Justiça são comuns, e um Estado judeu expansionista e cada vez mais chauvinista cuja amizade é tanto um bem quanto uma obrigação. Se os esforços de Barack Obama para mudar a imagem do império americano progrediram pouco, é em parte porque não foram acompanhados por uma tentativa séria para repensar essas prioridades estratégicas. A grandeza de sua retórica mal esconde a pobreza de sua visão.

Enquanto isso, no Oriente Médio a revolta é a última expansão de um novo dinamismo. Um governo apoiado pelo Hezbollah assumiu o poder no Líbano por meios constitucionais, invalidando os cálculos de Washington e aprofundando a influência de Teerã. A Turquia, sob um governo islâmico, tem conduzido uma política externa ambiciosa, que ignora a classificação de Washington. Mesmo no Iraque e no Afeganistão, os Estados Unidos não podem mais contar com a deferência dos governos que eles ajudaram a instituir.

Apesar da sua supremacia militar na região, Washington não parece conseguir traduzir seu poder em influência, ou seu domínio em hegemonia duradoura. Sua ajuda é raramente solicitada na resolução de conflitos. Uma preferência clara pela mediação regional tem emergido. Essa tendência é a expressão não de um antiamericanismo crescente, mas do aumento da autoconfiança e da convicção de que eles podem encontrar soluções sozinhos. O melhor que pode ser dito da política de Obama para o Oriente Médio é que ele não obstruiu essa tendência tanto quanto seu antecessor. Ele foi impedido de estimulá-la por seus instintos cautelosos e pelas alianças herdadas com Israel e a Arábia Saudita, cujos termos ele não quer ou não pode modificar. Os dias de hegemonia americana no Oriente islâmico não acabaram, mas pela primeira vez em anos, de Ancara ao Cairo, de Túnis a Beirute, os contornos de um Oriente Médio pós-americano podem ser vislumbrados.

* Tradução de Bernardo Esteves